segunda-feira, 8 de março de 2010

Capítulo de um livro que provavelmente nunca será escrito ou, o diário interrompido no dia 1

Agora as ideias únicas e solitárias que estavam há tempos entaladas na garganta saem de mim aos tropeços, pelas pontas dos dedos, misturadas com outros sabores engasgados que tenho experimentado. Que seja completa a digestão.

Num fim de tarde destes, quando voltava para casa pela Avenida Bento Gonçalves, vi na ação de uma menina a personificação de uma inquietude minha. A criança, interrompida de suas brincadeiras e distrações no parque, gritava em um tom de quase pânico para a mãe, sentada há poucos metros de distância: - Mãe! Olha! Uma arã...

Parou de súbito enquanto apontava para o “monstro” preto com várias patas no chão, quase aos seus pés, irreconhecível e assustadoramente vivo. Tentou de novo, aos berros, nomeá-lo: - Uma arã...

Engasgou. Não sabia o que o bicho era, mas sabia que não era uma aranha. E a falta da palavra para denominar o conceito tornava o animal asquerozo ainda mais assustador. A angústia de não dizer, de não ter como dizer, era ainda mais angustiante que a presença do bicho, e paralisava a menina, dedo apontado para o chão, intrigada. Como se a falta de palavras para nominar a causa do medo também provocasse a falta de pernas para correr dali e superar a apatia.

Hoje voltei a pensar nessa cena quando despertei de uma incursão literária, sobressaltada, duas paradas depois do ponto em que eu deveria ter descido do ônibus para ir ao trabalho. A relação com as profecias da obra-prima de George Orwell, 1984, foi inevitável. Pensando bem, depois de tanto tempo sem escrever, sinto-me um pouco como o herói Winston Smith ao rabiscar anotações na primeira página de seu diário. Ele na sua transgressão, eu na minha. Esse texto foi escrito ao sabor de chocolate (daqueles com maior concentração da cacau).

Como ele, sinto falta de palavras. Sinto fome e vontade de saborear um bom texto e sinto falta do tempo em que eu viajava buscando as melhores composições para contar histórias. Eu contava histórias, e até acreditava que eram boas. Agora tenho me alimentado da carne dura dos releases e de insossas notas de reclamações sobre o caos no serviço público e suas meias porções de informações. Fora do trabalho, saboreio com veracidade os verbos, substantivos, adjetivos, advérbios... palavras de todas as classes que tenho encontrado nos livros onde busco me nutrir com uma alimentação mais rica que pobres leads. Tenho buscado ler e reler os clássicos.

Mesmo assim, sinto tristemente que, em pouco tempo, vou aprender fluentemente um dialeto parecido com o Novafala, a linguagem oficial da ditadura profetizada por Orwell, tão vazia de sentido quanto certas notícias que se vêem por aí.

Respiro fundo. Hoje é o dia um de mais um recomeço. Um de muitos que já passaram e de muitos outros que virão. Sinto falta dos que me são queridos e daqueles que há pouco tempo estavam tão perto e agora estão longe, se afastando cada vez mais. Mas, pelo menos só por hoje, eu prefiro a solidão.

Provavelmente passarei por mais um bom tempo sem dar as caras por aqui. Só volto quando preciso de refúgio. Depois do desabafo, ponho meu melhor sorriso no rosto e saio por aí, com discreta displicência, até que tenha o ânimo renovado. Foi um prazer, de novo, editar um texto meu ao sabor de chocolate (literalmente).

Este é apenas um capítulo, talvez o primeiro, de um livro que provavelmente nunca será escrito. Às favas, Grande Irmão!

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