domingo, 18 de maio de 2008

Refugiados


Maio de 1948 mudou a vida de Isam Issa, de 51 anos, e de outros milhares de muçulmanos, muito embora ainda nem fossem nascidos na época. Em Pelotas desde outubro do ano passado, o palestino vive hoje as conseqüências dos acontecimentos daquele final de década.
Em novembro de 1947 a Organização das Nações Unidas (ONU) redesenhou o mapa do território Palestino, definindo fronteiras entre dois Estados - um judeu e um árabe. A decisão arbitrária nunca foi aceita pelo lado árabe, mas foi apoiada pelos judeus, que em 15 de maio do ano seguinte instituíram o Estado de Israel. O Estado Palestino árabe jamais foi proclamado.


Marco histórico do conflito no Oriente Médio, a independência de Israel, que completou 60 anos na última quinta-feira, provocou como reação imediata a invasão de exércitos de cinco países árabes e acabou resultando na expansão do território de Israel. O fato, símbolo de autonomia para os israelenses, é lembrado como um massacre pelo povo muçulmano.



Nascido Sem Pátria
O pai de Isam Issa era um entre os mais de 700 mil árabes que foram expulsos de suas casas e obrigados a fugir das áreas que passaram a ficar no âmbito das novas fronteiras impostas por Israel. Ele tornou-se refugiado no Iraque. Isam nasceu no Iraque, mas por causa da ascendência, não é reconhecido como iraquiano, e é considerado palestino. Já para as organizações internacionais, que não reconhecem a Palestina como nação, sua nacionalidade é "stateless", termo cunhado para designar alguém nascido em um lugar que é "menos que um Estado", em uma tradução literal.
O pai de Isam nasceu na Palestina, Isam é palestino, logo a Palestina existe porque, embora os mapas oficiais não a reconheçam, ele a reconhece. Por isso a denominação, tachada em seu passaporte de refugiado emitido pela ONU o aborrece. "O Iraque não é minha pátria mãe, é uma 'pátria madrasta', e uma madrasta má, como a de Isabella", diz, em uma comparação análoga ao assassinato de Isabella Nardoni, cujo pai e a madrasta são os principais suspeitos de tê-la jogado pela janela.
Sem negar a origem herdada do pai, Isam viveu no Iraque, cursou até o doutorado na área de melhoramento genético, casou-se com uma iraquiana e teve filhos, reconhecidamente iraquianos. Isso, na época em que a autoridade absoluta no Iraque era Saddam Hussein.
Em 2003, no entanto, após a invasão americana e a queda do líder, a minoria xiita ascendeu ao poder e declarou uma verdadeira "caça às bruxas" aos sunitas e palestinos, que sob a acusação generalizada de terrorismo passaram a ser considerados uma ameaça à soberania do novo regime e à soberania de Israel sobre o território palestino.
Isam não tinha para onde ir, mas precisava ir embora. Em meio à perseguição, assim como seu pai havia feito décadas antes, ele também fugiu, dessa vez para a Jordânia, refugiando-se no campo de Rwaished, a 70 quilômetros da fronteira com o Iraque. Passou quase cinco anos exilado, vivendo em um acampamento no deserto, sem contato com a família e em condições precárias de sobrevivência, preparando-se para ir a algum país que o aceitasse. Sozinho, estudou línguas e aprendeu, em vários idiomas, diversos sinônimos para as palavras preconceito, depois de ter o visto negado em vários Países. Isam foi um dos últimos a deixar o campo, junto com outros aproximadamente cem palestinos que vieram para o Brasil.
A postura diplomática brasileira, que diferente dos demais países não rejeitou refugiados de origem palestina, foi reconhecida internacionalmente. "É uma atitude nobre que não será esquecida nem ignorada pelas autoridades internacionais", elogia o secretário-geral adjunto da Confederação Palestina Latino-Americana e do Caribe, Maisar Omar, que também exerce o cargo de presidente honorário da Federação Palestina no Brasil e é professor de economia na Universidade Católica de Pelotas.
Maisar Omar também é palestino, mas é naturalizado brasileiro há 15 anos. Nasceu na cidade de Ramallah, território atualmente ocupado por Israel e administrado pela Autoridade Palestina eleita após a morte do líder Yasser Arafat, em 2004.
Segundo Omar, Pelotas é bastante receptiva o que ameniza as dificuldades de adaptação. "Para eles esta é uma oportunidade de um futuro melhor. A cidade, por outro lado, também tem muito a ganhar com esse intercâmbio e com a contribuição de pessoas como o doutor Isam e a esposa, que são altamente qualificados", analisa.


Bem pra "cá" de Bagdá
Isam chegou a Pelotas em outubro do ano passado, junto com a mulher e os dois filhos (uma menina de 11 anos e um menino de 13), através do programa de reassentamento solidário da ONU. A família foi designada para cá por organizações internacionais que prestam apoio aos refugiados, e que consideraram a cidade a mais adequada para o professor, a esposa e os filhos.
Logo na chegada ele já conheceu um dos principais problemas do Brasil: a burocracia, pois, desde então, enfrenta uma verdadeira batalha por conta de discrepâncias na sua nova documentação, como a grafia do sobrenome - escrito com dois esses, e não com um apenas um - e a data de nascimento errada, para não citar outras.
A esposa de Isam, que trabalha como engenheira em uma empresa estatal iraquiana, retornou ao Iraque, onde aguarda o tempo que falta para sua aposentadoria antes de se estabelecer definitivamente em Pelotas. Além do salário da mulher, a família conta com uma modesta ajuda de custo oferecida aos refugiados.
Sem poder trabalhar, por causa da necessidade de novos documentos e por limitações impostas pelo próprio idioma, que ainda não domina com fluência, Isam dedica seus dias a acompanhar os filhos, que estudam em escola pública e têm diariamente aulas extras de português. Também faz parte de sua rotina freqüentes idas ao Café Aquários - local onde se sente bastante à vontade e lembra dos cafés de Bagdá -, e à Bibliotheca Pública, onde mergulha nos pesados volumes de gramática portuguesa. "Tenho que entender a gramática porque gramática é a lógica do povo - e entendendo sua lógica de é possível entender também seu espírito", afirma ele, que através dos estudos coleciona novas palavras em seu vocabulário, já bastante razoável. "Saudade" foi um dos primeiros verbetes que descobriu no dicionário.


Novo apartheid
De jeito simples, feições serenas e pele morena marcada pelo sol do deserto, Isam fala como se fosse natural misturar em uma conversa frases trilíngues em português, inglês e árabe, sempre gesticulando, e normalmente com um cigarro entre os dedos.
Apesar da dificuldade da comunicação, não é preciso entender nenhum idioma estrangeiro para compreender a substância daquilo que ele diz em seus depoimentos. As expressões do rosto pontuam as frases da narrativa no relato dramático de famílias separadas pela guerra, que precisaram deixar suas casas e simplesmente não têm para onde voltar.
"Quando a ONU fala em paz é melhor se preparar porque a guerra está chegando", reflete Isam, que assim como o professor Maisar acredita que a alternativa viável para a Palestina é a construção de um único Estado, para cristãos, muçulmanos e judeus. "A situação atual é dramática, é preciso por um ponto final nesse sistema de apartheid", defende Maisar.


Um país para chamar de "seu"
"Eu sou gaúcho. Eu sinto que sou gaúcho. Gosto da tranqüilidade daqui", fala Isam, em claro português. "O Brasil é uma chance", define. "Prefiro que meus filhos hajam como brasileiros, sejam brasileiros. Assim vai ser melhor pra eles". Essa é a perspectiva dos recém-chegados, que fazem esforço para se adaptar à nova casa com desapego aos velhos costumes.
"Quem não ama sua pátria-mãe não merece ter outra pátria", diz um ditado árabe. Talvez por acreditar nisso eles tenham se apropriado tão bem essa que é uma das características mais marcantes da cultura gaúcha: o orgulho e o amor pela terra.

As Memórias do Exílio - História de vida agora é roteiro
A história de vida de Isam e outras vítmas dos conflitos no Oriente Médio virou roteiro de televisão, e deve chegar também às telas de cinema. Isam Issa é um dos cinco palestinos refugiados no Brasil escolhidos para serem personagens do documentário A Chave de Casa, produzido pela Mixer, de São Paulo, e com co-produção da TV Cultura e da rede Sesc TV. O projeto é um dos vencedores do programa Janela Brasil, promovido pela Fundação Padre Anchieta, que premiou no ano passado 13 obras audiovisuais, segundo a temática "Brasil Invisível".



O vídeo, previsto para exibição na TV a partir de 2008 e ainda sem data para chegar em versão longa aos cinemas, documenta as últimas 48 horas dos refugiados no campo da Jordânia e o início da adaptação à nova vida, do ponto de vista social e político. Para isso, a jornalista Stela Grisotti, responsável pela pesquisa, direção e roteiro, foi conhecer de perto a situação dos refugiados palestinos, ainda na Jordânia, junto com outros quatro integrantes da equipe de produção. "Viajamos de São Paulo até Paris, e de lá voamos para Amã (capital da Jordânia). Depois foram mais cinco horas de carro até a fronteira com o Iraque e chegando lá nos deparamos com aquelas pessoas, naquela situação. No mais, era só areia e pedra", relata ela, que pretende fazer um contraponto da globalização mostrando como as fronteiras, ao invés de se abrir, estão cada vez mais fechadas, impedindo que o direito de ir e vir seja exercido plenamente, e por todos.
O documentário, que também teve cenas gravadas em outras cidades do País onde vivem os demais refugiados que participam do filme, coloca em evidência os cenários do cotidiano de cada um. De Pelotas, Isam aparece em cenas na praia do Laranjal, nas ruas do centro da cidade, na Bibliotheca Pública e no Café Aquários.



Refugiados no Brasil
* Vivem no Brasil hoje cerca de 3,7 mil refugiados, oriundos de 69 países;
* Destes, quase 80% vieram da África, a maioria da Angola;
* Atualmente, os colombianos representam o grupo que mais cresce no país;
* Em 1999 o Governo brasileiro firmou o acordo de reassentamento com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). O programa de reassentamento é realizado em parcerias com organizações da sociedade civil;
* O objetivo é atender refugiados que continuaram tendo problemas no primeiro país de asilo (ameaça à segurança pessoal, dificuldade de integração, etc.);
* 22 cidades, em 4 estados brasileiros, possuem refugiados reassentados, sendo que a maioria deles vive em São Paulo e no Rio de Janeiro.
* Dados fornecidos pelo ACNUR. Saiba mais sobre refugiados no site:
Texto: Bianca Zanella Fotos: Paulino Menezes (1, 3) e Divulgação Mixer (2) Extraído de: Jornal Diário Popular / Cultura / Páginas 16 e 17 Publicado em: Pelotas, Domingo, 18 de maio de 2008

Um comentário:

Luciana FMP disse...

OI Bianca, adorei o que escreveu sobre os Refugiados Palestinos! Estou fazendo meu TCC com base neles. Por favor, poderia me ajudar com informações como por exemplo o contato com a diretora do filem " A Chave da Casa" ? Seria muito grata!

Obrigada esde já,
Luciana Fernanda Mayumi Pereira
luciana_mayumi@hotmail.com; fernanda_mayumi2000@yahoo.com.br