Em um apartamento claro e arejado, Eunice espera. Uma espera bem mais paciente e agradável que de tempos passados. Sentada sobre uma poltrona verde, com um colar de grandes contas coloridas ela recebe alegremente os visitantes com cumprimentos distantes. Pede licença, e com o auxílio das muletas cor-de-rosa caminha a passos mansos até o quarto para retocar o batom, com sua blusa muito branca, como as paredes da ampla sala de estar. Também pudera. Branco é a mistura de todas as cores que ela adora.

Há tempos que Eunice passou a sentir repulsa do preto. Comprou as muletas da cor que encontrou e lamenta que não sejam fabricadas cadeiras de rodas coloridas. "A cor passou a ter um outro significado na minha vida", diz ela. Mas não foi apenas a cor.
O andar de Eunice é uma vitória para quem havia deixado de caminhar, assim como vestir-se só e como receber visitas depois de tanto tempo de reclusão. A pose para a foto é um desafio. Dona de belas feições, ela jamais perdeu a vaidade. Por conta disso, foram dois anos sem permitir registros da sua imagem, sem reconhecer-se no espelho e não raro sem ser reconhecida por causa dos efeitos colaterais de um tratamento árduo.
Lições de vidaA psicóloga Eunice Damé Wrege, 61 anos, sempre foi uma profissional ativa. Professora universitária, mantinha um consultório particular e ainda assessorava empresas na gestão de recursos humanos.
Há 3 anos ela foi surpreendida pelo diagnóstico de uma doença chamada Granulomatose de Wegener e de uma hora para a outra teve a rotina interrompida, obrigada a abandonar tudo e dedicar todas as suas forças para lutar pela própria vida.
Em cada 100 mil pessoas apenas 3 sofrem dessa doença. Quando soube, ela se fez a pergunta óbvia que qualquer outra pessoa faria: "por que eu?" "A gente sempre pensa que essas coisas nunca vão acontecer com a gente, mas acontecem."
A descoberta veio através de sinais como rinite, olhos vermelhos, cansaço e depressão, sintomas que mascaravam o real problema: uma espécie de reumatismo raríssimo. Como é uma doença autoimune, o corpo de Eunice passou a combater o próprio corpo, e ela precisou se submeter à quimioterapia e a medicamentos para diminuir as defesas do organismo, ficando vulnerável a qualquer contato com outras pessoas. Com a saúde fragilizada, um simples resfriado se tornou um grande risco.
"Quando a gente adoece, adoece todo mundo junto: a família, os amigos... Mas a cura é um processo solitário", diz ela, que fez das várias batalhas vencidas um mosaico de experiências registradas em livro.
Patchwork, retalhos da alma - que a autora autografa hoje à tarde na Livraria Mundial - é uma mensagem de esperança de quem teve a vida despedaçada e sobreviveu, com alegria e fé.
"Tenho medo de me expor, medo de parecer ridícula" confessa Eunice, que foi convencida a publicar o livro em favor de uma causa nobre. Ao dividir os relatos e desabafos que antes só eram compartilhados com familiares e amigos pela Internet, ela espera tornar sua cura menos solitária e oferecer um alento a quem passa por situações semelhantes. Além disso, o livro serve como alerta para outras vítimas dessa doença silenciosa.
"A gente tem que dar uma choradinha e em seguida pintar os olhos, dar um sorriso que a vida segue!"
Em suas crônicas escritas em linguagem simples, Eunice consegue falar com leveza do drama, das idas e vindas do hospital, da UTI e de todos os duros aspectos do tratamento, retratados por palavras de alguém que se sente renascida. "Quando a gente adoece volta a ser criança. A inversão é tanta que eu às vezes chamava as minhas filhas de 'mãe'", conta a autora, que a exemplo da crônica O coelhinho da Páscoa também passou por aqui
(leia o trecho nesta página) diversas vezes mergulhou nos refúgios do imaginário infantil para traduzir o que sentia.
Apesar de tudo, ela pouco se queixa e preferiu assumir o papel de sobrevivente, ao invés do papel de vítima. "Nunca fui de ficar reclamando. Mas quando eu estava triste e me diziam para não chorar, mesmo assim eu chorava. Eu tinha motivos pra isso, oras! Mas a gente tem que dar uma choradinha e em seguida pintar os olhos, dar um sorriso que a vida segue!", afirma, com o tom de alguém que realmente já viveu muito para compartilhar conselhos e lições. Hoje, por sinal, é aniversário dela, para quem celebrar a vida tem realmente um significado muito especial.
Prestigie!O quê: sessão de autógrafos de lançamento do livro Patchwork, retalhos da minha alma, da autora Eunice Damé Wrege
Quando: hoje, das 18h às 19h30min
Onde: na Livraria Mundial (rua 15 de Novembro, 564)
Leia um trechoComo uma criança, a Páscoa começou a aguçar minhas fantasias. Jamais seria uma boa jogadora de pôquer, pois não podia deixar de esconder meus planos. Vou à casa da afilhadinha, a pequena Sofia, vou abraçar a dedicada afilhada Fernanda, vou visitar as tias, vou, vou. Era eu e mais todos os coelhinhos da Páscoa saltitantes visitando meio mundo. Aliás, eu era o próprio. Visualizava uma coelhinha gordinha dando cambalhotas de jardim em jardim.
Mais se aproximava a semana da Páscoa, mais eu mirabolava.
Até que esquentou o tempo e a temperatura de meu corpo também. De tanto o coelhinho pular? Não, era a febre mesmo. Essa parte, agora, quem vai pular sou eu, aqui no papel, porque não vale a pena a gente ficar remoendo. Só para encurtar o caso, Sexta-feira Santa, eu tremia tanto, mais do que vara verde, e quando me dei conta - pois aprendi que doente é muito esperto e que às vezes é melhor ter memória fraca - estava indo para o hospital. É, acreditem se quiser, hospital. A Bel, sempre muito atinada, já estava com as mochilas a postos. Como? Não sei, ela é muito rápida!
Chegando lá, num instantinho ela arrumou o quarto com meus pertences. Eram os meus santinhos na mesa ao lado da cama, todos em cima de um guardanapo de linho branco bordado de vermelho e azul. Detalhe: bordado por mim, pois toda moça que se prezava, na época, aprendia a bordar para seu enxoval de casamento.
(...)
Sábado vem a surpresinha: lembram que no dia seguinte seria domingo de Páscoa? E os meus planos? Parece que um “Tsunami” tinha passado por ali e varrido todos eles.
Voltemos ao sábado. O doutor, este sim, com a própria cara de um muito bom jogador de pôquer, anuncia: “Vamos ter que ir para a UTI.” Minha reação? Nem sei, estou bem embaixo daquela maior e avassaladora onda. Senti meu coração bater com toda a força na ponta dos dedos, na garganta, até chegar às pernas. Aos poucos ele foi se acalmando pois eu perguntava : “Como é lá?”, “Por que tenho que ir para lá?” E as pessoas vão dizendo coisas, e é bem melhor acreditar naquilo de bom que dizem.
(...)
Texto: Bianca Zanella | Imagem: Divulgação | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Zoom / Capa | Publicado em: Pelotas, Terça-feira, 13 de janeiro de 2009