Não tinha aparência de novo, mas tinha o som da maturidade. As sete cordas amaciadas já estavam acostumadas às pontas dos dedos do dono. Hoje o violonista sem violão, inconformado, pergunta: quem andará dedilhando aquele seu bom e velho companheiro de quase 40 anos de boemia?
De tão inseparáveis que eram, o instrumento acabou virando sobrenome do instrumentista. Mílton da Costa Alves assumiu a identidade do violão que lhe deu fama: virou Mílton Sete Cordas, conhecido codinome da noite pelotense.
Aos 15 anos já demonstrava habilidade com o cavaquinho, tocando nas rodas que se formavam pelas ruas da Várzea e da zona do Porto. Aos 18 ingressou no serviço militar e iniciou no quartel a parceria que continua até hoje com Avendano Júnior.
Era final da década de 1950 quando Mílton se alistou para servir à ONU em uma missão de paz na faixa de Gaza. Viajou pela Grécia, pelo Líbano, conheceu lugares como Alexandria e Jerusalém. Entre Egito e Israel fez amizade justamente com os outros músicos da expedição.
O professor e militar Edgard Nogueira, o Gaia, também fazia parte da diligência e “organizou” o grupo que animava a estadia dos soldados. Foi numa dessas apresentações informais que foram ouvidos pelo embaixador do Brasil na cidade do Cairo e convidados a tocar em uma recepção para a Seleção brasileira de futebol. “Nós só tínhamos instrumentos velhos. Aí o Nogueira fez uma relação do que precisávamos e o embaixador mandou vir tudo novo da Itália e também mandou confeccionar uma roupa pra nós” lembra Mílton, que, em traje de gala, tocou para uma plateia de craques como o Garrincha e o Pelé em um hotel do Cairo.
De volta ao Brasil, em 1961, passou a trabalhar no setor de transportes da Embrapa. Foi também motorista de ônibus nas linhas entre Pelotas e Porto Alegre, Chuí e Camaquã. Em 1991 se aposentou. Comprou um táxi para seguir trabalhando, mas acabou vendendo o carro cinco anos depois. “Depois que a gente fica velho não consegue mais emprego, aí só me restou a música.”
Um violão de jacarandá
Foi através dos LPs do mestre do choro Waldir Azevedo - carioca compositor de hinos como o Brasileirinho - que Mílton ouviu pela primeira vez os bordões graves do violão de sete cordas e se encantou. Ele, que nunca tinha ouvido falar no instrumento, pediu ao amigo Avendano que perguntasse a Azevedo como era gerado aquele som peculiar no acompanhamento, em uma das correspondências que os dois cavaquinhistas trocavam.
O tal instrumento era uma novidade no mercado, fabricado usando como sétima uma corda de violoncelo. Esclarecido o mistério da “baixaria”, Mílton tratou logo de encomendar um exemplar fabricado artesanalmente pelo consagrado luthier Silvestre na loja Bandolim de Ouro, até hoje ponto consagrado no mapa da música no Rio de Janeiro.
Para pagar o objeto de desejo, que custou Cr$ 672 (672 cruzeiros), ele e Avendano fizeram campanha para arrecadar fundos. “Nós fizemos uma rifa e saíamos a dar serenata. Hoje não dá mais pra fazer isso na rua, prova é que eu tive o violão roubado.”
O violão foi comprado em 1971 e tem a idade do filho mais velho de Mílton. “Eu fui um cara que tive muitas coisas. Quando me separei da minha primeira esposa deixei tudo. Saí de casa só com umas roupas, um revólver e o violão”, diz o músico que teve o instrumento levado por assaltantes em uma madrugada de novembro do ano passado, quando ia a pé para casa depois de mais uma apresentação no bar Liberdade.
Contabilizado o valor sentimental da peça, a raridade tem ainda valor comercial. Exemplares semelhantes, fabricados na mesma época, chegam a ser negociados na Internet por valores em torno de R$ 4 mil atualmente. “Só espero que meu violão não tenha virado crack.”
Sem outra alternativa, o músico segue tocando com um violão emprestado de outro grande nome da música e da boemia pelotense: Possidônio Tavares. Apesar de grato pelo empréstimo, que lhe permite continuar em atividade, Mílton não tem cerimônia em dizer que o violão de Possidônio - com cordas de nylon - não é tão bom quanto era o dele, de cordas de aço.
Hoje Mílton assiste com orgulho ao filho mais novo em suas primeiras incursões no universo da música. “Mas eu não quero música pra ele. Se tiver que ser músico, que seja doutor em música e não músico de boteco que nem eu. Desde os cinco anos ele já fazia uns barulhinhos na flauta e se continuar estudando vai dar show”, afirma ele, prenunciando um músico pelotense da nova geração com grande potencial chamado Thiago Alves, de 11 anos.
Desanimado e sem o “seu” violão, este ano Mílton Sete Cordas - figura conhecida de outros carnavais em Pelotas - ficará fora da tradicional Banda do Costinha. “Para tocar na rua tem que ser com cordas de aço. Além do mais, eu já tô meio velho pra essas coisas...”
Nas noites de sextas e sábados Mílton segue com sua rotina de apresentações no bar Liberdade (rua Marechal Deodoro, 525) com Avendano Júnior e companhia, das 21h30min às 2h30min.
(VIDE FOTO NO DIÁRIO POPULAR)
Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Zoom / Capa | Publicado em: Pelotas, Quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
De tão inseparáveis que eram, o instrumento acabou virando sobrenome do instrumentista. Mílton da Costa Alves assumiu a identidade do violão que lhe deu fama: virou Mílton Sete Cordas, conhecido codinome da noite pelotense.
Aos 15 anos já demonstrava habilidade com o cavaquinho, tocando nas rodas que se formavam pelas ruas da Várzea e da zona do Porto. Aos 18 ingressou no serviço militar e iniciou no quartel a parceria que continua até hoje com Avendano Júnior.
Era final da década de 1950 quando Mílton se alistou para servir à ONU em uma missão de paz na faixa de Gaza. Viajou pela Grécia, pelo Líbano, conheceu lugares como Alexandria e Jerusalém. Entre Egito e Israel fez amizade justamente com os outros músicos da expedição.
O professor e militar Edgard Nogueira, o Gaia, também fazia parte da diligência e “organizou” o grupo que animava a estadia dos soldados. Foi numa dessas apresentações informais que foram ouvidos pelo embaixador do Brasil na cidade do Cairo e convidados a tocar em uma recepção para a Seleção brasileira de futebol. “Nós só tínhamos instrumentos velhos. Aí o Nogueira fez uma relação do que precisávamos e o embaixador mandou vir tudo novo da Itália e também mandou confeccionar uma roupa pra nós” lembra Mílton, que, em traje de gala, tocou para uma plateia de craques como o Garrincha e o Pelé em um hotel do Cairo.
De volta ao Brasil, em 1961, passou a trabalhar no setor de transportes da Embrapa. Foi também motorista de ônibus nas linhas entre Pelotas e Porto Alegre, Chuí e Camaquã. Em 1991 se aposentou. Comprou um táxi para seguir trabalhando, mas acabou vendendo o carro cinco anos depois. “Depois que a gente fica velho não consegue mais emprego, aí só me restou a música.”
Um violão de jacarandá
Foi através dos LPs do mestre do choro Waldir Azevedo - carioca compositor de hinos como o Brasileirinho - que Mílton ouviu pela primeira vez os bordões graves do violão de sete cordas e se encantou. Ele, que nunca tinha ouvido falar no instrumento, pediu ao amigo Avendano que perguntasse a Azevedo como era gerado aquele som peculiar no acompanhamento, em uma das correspondências que os dois cavaquinhistas trocavam.
O tal instrumento era uma novidade no mercado, fabricado usando como sétima uma corda de violoncelo. Esclarecido o mistério da “baixaria”, Mílton tratou logo de encomendar um exemplar fabricado artesanalmente pelo consagrado luthier Silvestre na loja Bandolim de Ouro, até hoje ponto consagrado no mapa da música no Rio de Janeiro.
Para pagar o objeto de desejo, que custou Cr$ 672 (672 cruzeiros), ele e Avendano fizeram campanha para arrecadar fundos. “Nós fizemos uma rifa e saíamos a dar serenata. Hoje não dá mais pra fazer isso na rua, prova é que eu tive o violão roubado.”
O violão foi comprado em 1971 e tem a idade do filho mais velho de Mílton. “Eu fui um cara que tive muitas coisas. Quando me separei da minha primeira esposa deixei tudo. Saí de casa só com umas roupas, um revólver e o violão”, diz o músico que teve o instrumento levado por assaltantes em uma madrugada de novembro do ano passado, quando ia a pé para casa depois de mais uma apresentação no bar Liberdade.
Contabilizado o valor sentimental da peça, a raridade tem ainda valor comercial. Exemplares semelhantes, fabricados na mesma época, chegam a ser negociados na Internet por valores em torno de R$ 4 mil atualmente. “Só espero que meu violão não tenha virado crack.”
Sem outra alternativa, o músico segue tocando com um violão emprestado de outro grande nome da música e da boemia pelotense: Possidônio Tavares. Apesar de grato pelo empréstimo, que lhe permite continuar em atividade, Mílton não tem cerimônia em dizer que o violão de Possidônio - com cordas de nylon - não é tão bom quanto era o dele, de cordas de aço.
Hoje Mílton assiste com orgulho ao filho mais novo em suas primeiras incursões no universo da música. “Mas eu não quero música pra ele. Se tiver que ser músico, que seja doutor em música e não músico de boteco que nem eu. Desde os cinco anos ele já fazia uns barulhinhos na flauta e se continuar estudando vai dar show”, afirma ele, prenunciando um músico pelotense da nova geração com grande potencial chamado Thiago Alves, de 11 anos.
Desanimado e sem o “seu” violão, este ano Mílton Sete Cordas - figura conhecida de outros carnavais em Pelotas - ficará fora da tradicional Banda do Costinha. “Para tocar na rua tem que ser com cordas de aço. Além do mais, eu já tô meio velho pra essas coisas...”
Nas noites de sextas e sábados Mílton segue com sua rotina de apresentações no bar Liberdade (rua Marechal Deodoro, 525) com Avendano Júnior e companhia, das 21h30min às 2h30min.
(VIDE FOTO NO DIÁRIO POPULAR)
Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Zoom / Capa | Publicado em: Pelotas, Quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
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