domingo, 19 de outubro de 2008

Nos bastidores dos Contos Gauchescos

Claquete... "Ação!" Agora só quem caminha no set de gravações é o jovem ator Leonardo Machado, mas quem entra em cena e fala é Blau Nunes: "Então, Picumã. O que é que tu fazes com o dinheiro que ganhas vendendo essas prendas?" O texto é pontuado por tragadas de fumo.

Juca Picumã, sentado ao lado, trança arreios e responde, com a voz rouca de Canabarro, o ator: "Mando tudo pra Rosa... Tudo! E ainda é pouco!"

"Rosa é minha filha! Linda como os amores...", responde, satisfazendo a curiosidade do gurisote interlocutor e de todos os que assistiam à cena. "Mas não é pra o bico de qualquer lombo-sujo, como tu..." adverte, antes de o diálogo esvair-se...

"Corta!", interrompe o diretor Henrique de Freitas Lima em voz de comando, dando início à coreografia sincronizada da equipe de produção. Todos sabem exatamente o que fazer: devem desmontar os equipamentos e remontá-los em nova posição para a próxima tomada. O elenco descansa na sombra. Roberto Birindelli, que entrará na cena seguinte, revisa o texto no roteiro amassado que guarda dentro da bota que complementa o seu figurino, uma farda azul e um lenço vermelho.

Henrique, o diretor, olha para o céu otimista. O trabalho segue no ritmo planejado, apesar das chuvas que atrapalharam a primeira tarde de gravações. Já se foram onze dias desde que o set foi instalado naquela locação. Seu assistente de direção teve que ser substituído porque machucou o pé durante as gravações, mas com sorte a equipe não terá mais nenhum imprevisto. É véspera do fim das filmagens e por isso ele observa apreensivo a direção do vento e espera que o tempo continue assim, firme, para que não atrapalhe as gravações das últimas cenas na manhã seguinte.

Estamos na estância do Inhatium, interior do município de São Gabriel, a cerca de 300km de Pelotas, onde os personagens criados por Simões Lopes Neto há quase cem anos ganham nova vida e transitam pela cochilha coberta de mata nativa. Paisagem cada vez mais rara. O cenário das aventuras do jovem recruta Blau Nunes prestes a ganhar as telas do cinema, no passado, já foi locação de episódios reais da epopéia farrapa.

O local foi paradouro para o imperador Dom Pedro II e sua comitiva na viagem que pôs fim ao cerco de Uruguaiana, durante a Guerra do Paraguai, pelos idos de 1865. Mas isso é assunto para outro causo, tema de outros contos como O Chasque do Imperador, ou O Anjo da Vitória do mesmo Simões, contador de histórias que os leitores não cansam de ler, e que artistas não cansam de recontar de diferentes formas.


Nova "tradução" carrega a essência da narrativa para as telas

Essa história, ou pelo menos essa parte dela, fala de uma certa moça que perdeu a trança no vértice de um triângulo amoroso, por conta da honra e da rivalidade dos homens. E conta ainda de uma "parada que custou vida, mas foi jogada..." por causa de um taura que apostou a mulher num tiro de taba. Jogo do Osso e Os Cabelos da China são os primeiros dos seis Contos Gauchescos que irão passar nas telas e telonas.

Além destes, Trezentas Onças, Contrabandista, No Manantial e Negro Bonifácio serão os outros episódios da série que terá no primeiro, do total de sete capítulos, o documentário Entre o Real e o Imaginado, de Pedro Zimmermann, que relembra a trajetória de Simões Lopes Neto.

A série, produzida pela cinematográfica Pampeana (a mesma que produziu o filme Concerto Campestre, em 2004), deve ir ao ar entre maio e junho do ano que vem pela TVE Piratini em todo o Estado, aos domingos, em horário nobre, e poderá entrar também na grade de programação da TV Brasil, nova rede pública nacional. A confirmação, no entanto, ainda depende de negociações.

A captação de imagens é feita no HD em vídeo de alta definição, com som direto e finalização digital. "Estamos trabalhando com uma banda internacional", diz Freitas Lima, que já pensa nos suportes necessários para colocar em prática os planos de exportar a série. "Quem sabe não fazemos uma versão em espanhol?"

Os curtas de 25 minutos terão também uma versão para o cinema, que deve estrear no festival de Gramado do ano que vem. Uma tropeada será o fio condutor da narrativa do longa metragem. Os incidentes dessa viagem vão desencadear as histórias das lembranças do personagem-narrador Blau Nunes em várias fases da vida, da juventude à maturidade.

"Os contos tem um grande potencial dramático, mas tivemos que adaptar. No texto original têm muitas frases que 'dizem tudo', mas cinema não dá pra fazer assim, simplesmente contando as coisas. No cinema a gente tem que mostrar, construir as cenas", diz o diretor, que assina também o roteiro. Por isso, ele explica, na adaptação a narrativa em off (quando um trecho da história é "contada" para "explicar" o que acontece no filme) será usada com moderação. "A breve narrativa que usamos é mais uma homenagem ao estilo de contar histórias da literatura de Simões que um recurso de encadeamento do roteiro."


Sotaque original

Os atores de Contos Gauchescos tiveram oficinas preparatórias para os papéis, mas de uma eles foram dispensados: não precisaram "treinar" para falar com sotaque dos pampas, já que o elenco é formado exclusivamente por gaúchos.

Leonardo Machado, Roberto Birindelli, JN Canabarro, Evandro Soudatelli e Renata de Lélis, são alguns dos nomes que estão no episódio Os Cabelos da China. O ator Marcos Breda foi convidado para um papel, mas não pôde participar das gravações por incompatibilidade da agenda. Não está descartada, entretanto a sua inclusão no elenco de um dos próximos curtas, que já tem o nome da atriz Daniela Escobar confirmado. São cogitadas também as participações de Júlia Lemmertz, Sílvia Pfeifer, Ittala Nandi, Paulo José e Sheron Menezes. "Alguns já são bem conhecidos, os outros não são tão famosos, mas têm carreiras ascendentes. Não precisamos trazer gente de fora pra fazer esses papéis. Temos atores muito bons que são daqui", elogia o diretor em busca de novas revelações das artes cênicas.

O episódio Jogo do Osso tem a participação especial dos músicos Renato Borghetti e Sérgio Rojas.

"É muito bom sair, porque isso te dá experiência e visibilidade, mas também é muito bom voltar. Sair me ajudou a reforçar a minha identidade, a cultura do meu lugar e me deu um referencial para o meu trabalho. Pode parecer utopia, mas eu quero ficar aqui", reflete o ator porto-alegrense Leonardo Machado, que tem no currículo os folhetins globais Malhação, O Clone e Senhora do Destino, além de várias produções cinematográficas gaúchas, como 3 Efes, do diretor Carlos Gerbase. Integrante da Companhia Rústica de Teatro, de Porto Alegre, ele esteve em Pelotas recetemente, onde encenou no palco do Sete de Abril as peças A Megera Domada e Sonho de uma noite de verão, ambas durante a Mostra de Teatro do Sesc.

"Aqui no sul a gente faz TV como quem faz cinema, com um cuidado a mais, e isso faz toda a diferença. Lá para cima são 'superproduções', mas tudo é feito em escala industrial, como se fosse uma fábrica de salsichas", compara o ator, que se diz fascinado pelo personagem Blau Nunes. "Eu li Simões pela primeira vez na escola, mas não tinha consciência de que ele era um escritor tão 'moderno'. Agora eu me dou conta do 'formigamento mental' que ele tinha", diz ele, que aos 32 anos de idade vive no cinema o Blau na fase jovem, com vinte e poucos anos. "O personagem tem toda a valentia, tem o lado heróico, mas nesse episódio ele a recém está chegando na guerra e tá meio assustado ainda."

Mais experiente em cena, o ator Roberto Pirindelli, de 45 anos, interpreta novamente um farroupilha. Com vários filmes - longas e curtas-metragens - e especiais para TV situados durante o período da revolução gaúcha, ele volta a dar vida ao arquetípico homem dos pampas. "A gente corre o risco de ser estereotipado. Os personagens são sempre os mesmos. As histórias retratam sempre o inverno, a guerra. O gaúcho veste sempre o mesmo pala. Mas eu me pergunto: onde é que está o momento de fraqueza desse homem que só pensa em vingança?", dispara, sobre o personagem que perdeu a mulher para outro homem, das tropas inimigas. A crítica, segundo ele, não é direcionada apenas à literatura de Simões, mas a toda a cultura do "gaúcho médio do interior".

"É só o herói que aparece. A gente nunca pega um personagem humano, mesmo. Só agora é que a arte começa a se libertar desse passado", avalia ele, que após ter concluído sua participação em Os Cabelos da China e nas novelas Duas Caras (Globo) e Chamas da Vida (Record) participa das gravações de um longa na Argentina e retorna ao Brasil para o início das filmagens de Vendeta, a nova novela da Record que conta a história da máfia no Brasil.


A parceria com o Instituto

Literatura e cinema andam de mãos dadas nesse projeto que pretende divulgar a obra simoniana por meio da linguagem audiovisual. O Instituto João Simões Lopes Neto (IJSLN), referência na preservação da memória do escritor pelotense, é parceiro da cinematográfica Pampeana na produção.

O Instituto possui licença de exibição dos vídeos (o documentário Entre o Real e o Imaginado já é passado nos eventos realizados pelo IJSLN) e terá os direitos exclusivos sobre a venda dos DVDs e CDs com a trilha sonora da série e do filme.

O IJSLN ainda mantém outras atividades, como a oficina de roteiro ministrada pelo também diretor e co-roteirista dos Contos Pedro Zimmermann.

No sábado passado, quando um grupo ligado ao Instituto esteve o set de filmagens de Os Cabelos da China, o cineasta Henrique de Freitas Lima e o presidente do IJSLN Henrique Pires manifestaram mais uma vez o interesse na parceria.

A visita às gravações do filme durou um dia, e teve a participação de convidados do Instituto, da produtora cultural Beatriz Araújo, de participantes da oficina de roteiro e alunos dos cursos de Cinema, Teatro, Filosofia e História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

O artista e Mário Mattos, fundador do Núcleo de Estudos Simonianos, estava curioso para saber se o roteiro teria encaixado "a cena do amante da china fungindo em um cavalo maneado". "Esse é o clímax da história", disse, entusiasmado. A boa surpresa foi poder assistir justamente a gravação dessa cena de batalha com direito à cavalo maneado, briga com lanças, tiros e efeitos especiais.


Locações

A gravação do documentário Entre o Real e o Imaginado, realizada em Pelotas, teve o patrocínio da Ceee através da Lei de Incentivo à Cultura do Rio Grande do Sul (LIC/RS) e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) pela Lei Nacional de Incentivo à Cultura - a Lei Rouanet -, além do apoio de logística da empresa Planalto.

Esta segunda etapa de gravação recém concluída, que incluiu os contos Jogo do Osso e Os Cabelos da China, teve o patrocínio da Aracruz Celulose e da Randon através da Lei Rouanet. A Planalto mantém o apoio logístico ao projeto, que conta ainda com a parceria da arrozeira Urbano e do frigorífico Marfrig, ambas empresas de São Gabriel.

Outros dois episódios serão gravados em terras gabrielenses, já que o município faz parte da base florestal da Aracruz. Para a tropeada que servirá de encadeamento para o longa-metragem as locações também já foram escolhidas: as gravações serão no município de Aceguá. "Descobrimos que lá tem um criador de 'bois de época'", brincou o diretor, referindo-se aos rebanhos de gado crioulo existentes naquela região da fronteira.

Para os episódios finais, Piratini e Livramento disputam qual deles irá sediar as locações. Belos cenários, ambas as cidades tem. O que vai pesar na decisão de qual será o rumo que elenco e equipe de produção irão tomar será, sem dúvida, a disposição dos patrocinadores.


Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Estilo / Capa | Publicado em: Pelotas, Domingo, 19 de oububro de 2008

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