"Aí a Raquel me disse: 'tem um espaço vago no Malg, você tem uma idéia?' E eu disse 'só preciso de um tempo'". Da conversa com a diretora do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (Malg), Raquel Schwonke - à procura por uma exposição para cobrir um intervalo na agenda das salas - o interlocutor teve dois dias. Dois dias e uma idéia: tirar o pó da memória de uma geração de artistas pelotenses esquecida no acervo do museu. Quem narra o diálogo é o professor José Luís de Pellegrin, do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Pelotas, organizador da mostra Produção Anos 80 e 90.
Instigante em cada centímetro de uma desordenada linha do tempo, a exposição desperta a curiosidade dos olhos e tapa dois buracos de uma vez só. Não entendam mal e não deixem que as impressões enganem. O furo da agenda está notoriamente aproveitado, tanto quanto se houvesse sido planejado tempos atrás. O principal furo que a exposição trata de cobrir é a lacuna histórica deixada até agora. "Quando eu falo da arte pelotense dessa época meus alunos ficam me olhando, não sabem do que estou falando. Mas também, se hoje eles têm 20 anos, naquele tempo estavam nas fraldas..."
Nostálgica para os remanescentes da geração Coca-Cola e surpreendente para a geração que já não se surpreende facilmente diante do inquietante e inquieto mundo contemporâneo, o conjunto de obras é, sobretudo, provocante. Talvez porque de certa forma traduza a gênese do que se vive hoje. Talvez por despertar uma expressão de questionamento parecida com a de uma criança que olha para cima e pergunta "Mãe, de onde é que eu vim?". Ao olhar para esta exposição do Malg, senhoras e senhores de vinte e poucos anos terão certeza de que sua origem é pop: a identidade e identificação com as obras não há de negar que culturalmente falando nasceram dos fecundos anos 80 e 90.
Ali está (bem) representado o ontem. Um passado não muito distante, que é ainda presente e mais vivo que o pretérito-mais-que-perfeito da história das artes, já gasta, tanto para as enciclopédias clássicas quanto para a Wikipédia. "O tempo passou e a gente não viu. A gente fez tanto e não teve tempo de pensar sobre o que fez", reflete Pellegrin, admirado de sua própria (re)descoberta ao passar em revista, mais uma vez, diante dos painéis.
Harly Couto, uma das artistas que fazem parte da exposição, surpreende-se também em frente a pinturas que há tempos não via, mas que continuam familiares, preservadas na memória exatamente como no acervo. "Eu olho e sinto como se estivesse pintando esse quadro na Cascata. Não sei dizer por quê, nem como é. Só digo o que sinto, agora, como quando pintei", diz, ao tentar descrever o indescritível enquanto repousa um olhar reflexivo sobre as telas.
Arte no descontexto pelotense
A história da arte universal dá conta de correntes clássicas, renascentistas, vanguardistas, modernistas, pós-modernistas... Pelotas, como o resto do mundo, não ficou alheia a estes movimentos no espaço e no tempo, muitas vezes de nomes repetitivos por falta de verbetes mais adequados. Mas as influências mais determinantes para a arte daqui foram outras.
Partindo do início dos anos 50, até meados da década de 60, basta um breve retrospecto para o encontro de contrapontos. Enquanto lá fora o mundo vivia a grande explosão chamada de neovanguardismo e mergulhava de vez na abstração, em Pelotas a Escola de Belas Artes - fundada em 1949 - vivia seus tempos áureos e cheios de didáticas, tendo como um de seus principais nomes Aldo Locatelli. "De lá para cá a arte pelotense foi muito inspirada na escola clássica e a gente carrega essa tradição nas costas até hoje na nossa arte moderna", afirma o professor.
Dos anos da ditadura e expressões tímidas ou rebaixadas ao underground aos tempos de abertura política, novas mudanças de postura e linguagem. "Nessa época houve a transição, a Escola de Belas Artes virou ILA (Instituto de Letras e Artes) e depois IAD (Instituto de Artes e Design). Houve algumas manifestações de certa ousadia por parte dos artistas daqui, mas talvez não tenham sido incorporadas no todo."
Em novas dimensões, arte
Nos anos 80 sobrou tempo e dinheiro para ser gasto com arte. Gêneros artísticos que haviam sido dispensados foram retomados, como a pintura e a escultura. Mas a escultura saiu dos pedestais, foi para o chão, as telas deixaram as paredes para ir para a rua e para todos os lugares. "Virou uma arte que não é uma coisa nem outra, mas é isso mesmo", define indefinidamente o professor. Em um mundo onde ficção e realidade estão intrínsecos, os novos artistas não vêem possibilidades de expressar as imagens que fazem do mundo de maneira segmentada. Impossível separar gravura de desenho, de pintura, de escultura. Linguagens diferentes dividem em harmonia espaços com humor, dramaticidade, cultura popular, a liberdade gráfica e a publicidade e todos os demais reflexos dessa geração de consumo. "Enquanto os modernistas do início do século queriam ir para o futuro, no final do século os artistas pós-modernos queriam ir para toda parte."
No fluxo veloz das imagens a proposta é de contrafluxo. "A resistência é se dar conta de que mesmo que eu siga o fluxo não é preciso se submeter a ele nem engolir tudo goela abaixo", fala Pellegrin no convite à um olhar mais apurado sobre o que foi produzido de arte localmente nas duas últimas décadas do século passado.
"Tudo bem que a nossa arte não seja tão moderna assim, nem tão transformadora. Mas ela é boa, feita por artistas que construíram uma bela trajetória. A gente ainda é conservador. Nossa pintura, de certa forma, ainda está pendurada na parede. Mas enfim, é a nossa história. E é de verdade."
Confira
O quê: Produção Anos 80 e 90
Quando: até o dia 12 de outubro, com visitação de terça a domingo das 10h às 19h. Vernissage nesta quarta-feira (8) às 18h.
Onde: nas salas Marina Moraes Pires e Luciana Araújo Renck Reis, do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (rua General Osório, 725)
Entrada franca
Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Zoom / Capa| Publicado em: Pelotas, ? de oububro de 2008
Instigante em cada centímetro de uma desordenada linha do tempo, a exposição desperta a curiosidade dos olhos e tapa dois buracos de uma vez só. Não entendam mal e não deixem que as impressões enganem. O furo da agenda está notoriamente aproveitado, tanto quanto se houvesse sido planejado tempos atrás. O principal furo que a exposição trata de cobrir é a lacuna histórica deixada até agora. "Quando eu falo da arte pelotense dessa época meus alunos ficam me olhando, não sabem do que estou falando. Mas também, se hoje eles têm 20 anos, naquele tempo estavam nas fraldas..."
Nostálgica para os remanescentes da geração Coca-Cola e surpreendente para a geração que já não se surpreende facilmente diante do inquietante e inquieto mundo contemporâneo, o conjunto de obras é, sobretudo, provocante. Talvez porque de certa forma traduza a gênese do que se vive hoje. Talvez por despertar uma expressão de questionamento parecida com a de uma criança que olha para cima e pergunta "Mãe, de onde é que eu vim?". Ao olhar para esta exposição do Malg, senhoras e senhores de vinte e poucos anos terão certeza de que sua origem é pop: a identidade e identificação com as obras não há de negar que culturalmente falando nasceram dos fecundos anos 80 e 90.
Ali está (bem) representado o ontem. Um passado não muito distante, que é ainda presente e mais vivo que o pretérito-mais-que-perfeito da história das artes, já gasta, tanto para as enciclopédias clássicas quanto para a Wikipédia. "O tempo passou e a gente não viu. A gente fez tanto e não teve tempo de pensar sobre o que fez", reflete Pellegrin, admirado de sua própria (re)descoberta ao passar em revista, mais uma vez, diante dos painéis.
Harly Couto, uma das artistas que fazem parte da exposição, surpreende-se também em frente a pinturas que há tempos não via, mas que continuam familiares, preservadas na memória exatamente como no acervo. "Eu olho e sinto como se estivesse pintando esse quadro na Cascata. Não sei dizer por quê, nem como é. Só digo o que sinto, agora, como quando pintei", diz, ao tentar descrever o indescritível enquanto repousa um olhar reflexivo sobre as telas.
Arte no descontexto pelotense
A história da arte universal dá conta de correntes clássicas, renascentistas, vanguardistas, modernistas, pós-modernistas... Pelotas, como o resto do mundo, não ficou alheia a estes movimentos no espaço e no tempo, muitas vezes de nomes repetitivos por falta de verbetes mais adequados. Mas as influências mais determinantes para a arte daqui foram outras.
Partindo do início dos anos 50, até meados da década de 60, basta um breve retrospecto para o encontro de contrapontos. Enquanto lá fora o mundo vivia a grande explosão chamada de neovanguardismo e mergulhava de vez na abstração, em Pelotas a Escola de Belas Artes - fundada em 1949 - vivia seus tempos áureos e cheios de didáticas, tendo como um de seus principais nomes Aldo Locatelli. "De lá para cá a arte pelotense foi muito inspirada na escola clássica e a gente carrega essa tradição nas costas até hoje na nossa arte moderna", afirma o professor.
Dos anos da ditadura e expressões tímidas ou rebaixadas ao underground aos tempos de abertura política, novas mudanças de postura e linguagem. "Nessa época houve a transição, a Escola de Belas Artes virou ILA (Instituto de Letras e Artes) e depois IAD (Instituto de Artes e Design). Houve algumas manifestações de certa ousadia por parte dos artistas daqui, mas talvez não tenham sido incorporadas no todo."
Em novas dimensões, arte
Nos anos 80 sobrou tempo e dinheiro para ser gasto com arte. Gêneros artísticos que haviam sido dispensados foram retomados, como a pintura e a escultura. Mas a escultura saiu dos pedestais, foi para o chão, as telas deixaram as paredes para ir para a rua e para todos os lugares. "Virou uma arte que não é uma coisa nem outra, mas é isso mesmo", define indefinidamente o professor. Em um mundo onde ficção e realidade estão intrínsecos, os novos artistas não vêem possibilidades de expressar as imagens que fazem do mundo de maneira segmentada. Impossível separar gravura de desenho, de pintura, de escultura. Linguagens diferentes dividem em harmonia espaços com humor, dramaticidade, cultura popular, a liberdade gráfica e a publicidade e todos os demais reflexos dessa geração de consumo. "Enquanto os modernistas do início do século queriam ir para o futuro, no final do século os artistas pós-modernos queriam ir para toda parte."
No fluxo veloz das imagens a proposta é de contrafluxo. "A resistência é se dar conta de que mesmo que eu siga o fluxo não é preciso se submeter a ele nem engolir tudo goela abaixo", fala Pellegrin no convite à um olhar mais apurado sobre o que foi produzido de arte localmente nas duas últimas décadas do século passado.
"Tudo bem que a nossa arte não seja tão moderna assim, nem tão transformadora. Mas ela é boa, feita por artistas que construíram uma bela trajetória. A gente ainda é conservador. Nossa pintura, de certa forma, ainda está pendurada na parede. Mas enfim, é a nossa história. E é de verdade."
Confira
O quê: Produção Anos 80 e 90
Quando: até o dia 12 de outubro, com visitação de terça a domingo das 10h às 19h. Vernissage nesta quarta-feira (8) às 18h.
Onde: nas salas Marina Moraes Pires e Luciana Araújo Renck Reis, do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (rua General Osório, 725)
Entrada franca
Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Zoom / Capa| Publicado em: Pelotas, ? de oububro de 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário