sexta-feira, 5 de setembro de 2008

(Não) Me use neste verão!

Uma campanha por uma estação mais agradável... para os ouvidos.

Os primeiros indícios do verão são o estopim para uma acirrada disputa no mercado fonográfico. Basta que as temperaturas do inverno comecem a subir para que apareçam novamente as barrigas de fora (e fora de forma – como conseqüência dos descontroles sazonais), as modas velhas da estação passada (porque ninguém teve tempo ainda de renovar o guarda-roupa) e as músicas candidatas a novo hit do verão. Estranhamente, o calor parece afetar o senso crítico das pessoas para muitas coisas, até para a sensibilidade artística.

Semana passada recebi por e-mail a demo de um tal Tiago Ferrari Show. Desconheço a procedência da aberração. Não sei descrever a minha reação ao ouvir a composição intitulada Me use neste verão. (Clique para ouvir)

Entrei no site da banda (tem link para caso alguém queira repetir essa experiência), que é aparentemente especializada em animação de bailes. Começou a tocar a Merceditas na trilha. O sotaque do cara que canta é impressionante (no mau, no péssimo sentido), além da expressão, da interpretação... O grupo tem de tudo no repertório: forró, axé, tchê music, reagge, pagode, pop rock e até “tradicionalistas” (ah, se MTG sonha...). Mas voltemos ao novo hit.

Cliquei no play. Ao fundo toca um teclado repetitivo, acompanhado da voz enjoada (meio nasal) da vocalista, que canta mais ou menos assim: Chegou verãããão / A cidade abre portas e janelas / As ruas viram grandes passarelas. O quarto verso da estrofe eu ouvi várias vezes e não entendi. É algo como “Na areia (não-sei-quem) perde o reinado”. Quem perde o reinado? Bom, deixa pra lá. Ninguém consegue ouvir por muito tempo, mas fui persistente. A seqüência foi ainda pior.

Alguns efeitinhos toscos de mixagem depois a voz recomeça: A paixão aflora / Mesmo em olhares casuais / O amor na pele tornam em par e casais (Quê?!?) / Entre corpos calientes e bronzeados...

A terceira estrofe parece o ápice da criatividade. Incrível como conseguiram fazer rimar tantos clichês em apenas quatro versos. E observem que o trecho começa com uma inversão do primeiro verso da primeira estrofe: O verão chegou (sacaram?) / No ar eu sinto o cheiro da magia / A vida na noite que renasce a cada dia / Um mundo de asfalto se transforma em areia.

Tenha paciência! Pior do que ler isso é ouvir. Por isso peço que me acompanhe até o final: Não há sentidos / Nessas ruas definidas prosseguir / A beleza é livre para ir ou vir / E o trânsito congestiona de sereias...

Esse até merece um bis: "E o trânsito congestiona de sereias." Dá pra imaginar uma coisa dessas? Liberdade poética também deveria ter limites, assim certas aberrações poderiam ser evitadas... Mas o melhor de tudo vem agora: Senhoras e senhores, com vocês, o refrão! (este cantado com a mesma voz nasalada do início, mas agora um pouco mais sexy. Aliás, o mesmo tom sexy que a vocalista usa pra dizer “caliente” no segundo verso): Vem, vem... deixar teu corpo molhadinho / Enquanto o meu é só luxúria e paixão / Vem, vem... Vem disputar dessa sereia / Musa. Abusa, e me use neste verããão...

Uau! Vocês podem imaginar o quanto fiquei perplexa depois disso? Por isso resolvi escrever esse texto, que mais que uma forma de compartilhar a piada, é uma forma de desabafo das minhas fortes emoções (que passaram do pavor – como alguém pode ser capaz de criar uma coisa dessas? – ao riso).

Mas o que realmente importa, voltando ao ponto de partida desse texto, é o risco que representa essa música demo (de demonstração e demoníaca) circulando na Internet. Vai que ela caia em mãos erradas? Já pensaram no que pode acontecer se alguém com alguma influência nos meios de comunicação e que compartilhe desse mal gosto a escute e resolva fazer dela mais um novo sucesso? Aí seremos todos obrigados a aturar isso tocando nas rádios!

Quem sabe até – e Deus me livre disso acontecer comigo! – a música vai embalar muitos romances fracassados, e já que o negócio é usar e abusar mesmo, serão muitas outras “paixões descartáveis” (dessas que a gente chama de amor) que ficarão imortalizadas nos acordes dessa canção também descartável e que por ser assim jamais deveria ter sido composta. Pensem nos prejuízos sociais dessa mercantilização do que deveria ser uma expressão artística... E pensem no uso que estão fazendo dos nossos ouvidos!

Posso até imaginar a cena: a gurizada numa tarde quente no Laranjal, admirando a beleza da Lagoa dos Patos, tomando chimarrão no calçadão com o porta-malas do carro aberto e obrigando todo mundo ao redor a ouvir a voz esganiçada dessa criatura, mesclada num repertório que incluirá o lançamento do ano da baiana Ivete, com a última do Armandinho, uma ou outra piada do Pretinho Básico pelo meio e, quem sabe mais um remix (talvez agora na versão funk) do refrão repetitivo na voz de Pedro Bial: “Use filtro solar. Use, u-use, use filtro solar”.

Okai. Use filtro solar, mas... pliiiiissss. (Não) me use neste verão, não!

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