domingo, 2 de novembro de 2008

Onde a história acontece

Por trás da fachada, um universo a ser (re)descoberto. A casa da rua Dom Pedro, 810, é construída de histórias; 436 metros quadrados de histórias. A porta de entrada, de vidro transparente, permite que se olhe além dela para um horizonte literário. Lá dentro, o sol que entra sem cerimônia pelas grandes janelas ilumina as escaiolas que sobem pelas paredes como heras, e recria suas formas a cada hora do dia.

Não se esqueça de dizer: a porta é de vaivém, e nunca pára. Está sempre se abrindo, para quem mais, além do sol, quiser entrar. E são muitos, sempre bem-vindos. Por ali circulam crianças, moços e velhos, quase que diariamente. Eles percorrem cômodos da residência que durante dez anos foi a moradia do escritor João Simões Lopes Neto e percorrem também as páginas dos livros com uma curiosidade alegre e sagrada. Na sala, como se saísse de uma das paredes, é o próprio Capitão quem saúda os visitantes, com um olhar jovial de quem diz: “Olá! Amigo! Apeie-se; descanse um pouco! Venha tomar um amargo!”

Pela leitura, quem chega vai à busca da redescoberta da cultura gaúcha e dos tesouros perdidos nas entrelinhas escritas por uma caligrafia rebuscada. O Negrinho do Pastoreio os acompanha na procura por este caminho literário que continua a ser percorrido à luz dos tocos de vela acesos pelas Lendas do Sul e pelos Contos Gauchescos. Nem sempre foi assim.


A reconstrução

Até o final da década de 1990 o local estava caindo aos pedaços. O imóvel, abandonado, por pouco não teve sua destruição decretada. Se isso tivesse ocorrido, os escombros do casario teriam enterrado uma história que, por sorte, alguém se interessou em investigar. Esse alguém era o pesquisador Carlos Sicca Diniz, que através de registros nos cartórios de Pelotas comprovou as suspeitas de que a casa havia pertencido ao mais célebre dos escritores pelotenses. No período em que viveu ali, de 1897 a 1907, João Simões escreveu a lenda O Negrinho Pastoreio.

A descoberta deflagrou uma batalha judicial que mobilizou a comunidade, desde a imprensa até os historiadores e admiradores da literatura simoniana. Sete anos mais tarde a aprovação de um projeto de lei do então deputado Bernardo de Souza transformou a casa em Patrimônio Cultural do Estado. A demolição não aconteceria, mas nada impedia que o prédio ruísse irremediavelmente - no final de um processo de degradação longo, solitário - apenas com a ajuda do tempo e da umidade.

Foi então que um grupo de pessoas disposto a devolver a casa ao seu antigo e mais notável dono apareceu. Esse grupo fundou o Instituto João Simões Lopes Neto, e através dessa instituição civil conseguiu captar recursos, restaurar o prédio e, principalmente, devolver a vida ao lugar.

"Só por ser antiga, a casa já merecia ser recuperada. Mais ainda por Simões ter vivido aqui. A sua obra é a substância desse lugar", diz o escritor Vitor Ramil, autor de Satolep (Cosac Naify, 2008), que confessa uma relação afetiva com "o homem" João. Apesar de não serem contemporâneos, a amizade entre os dois se revela no estilo da prosa e na forma como Vitor é capaz de dialogar com o conterrâneo - autor atemporal.

Ramil defende a tese de que foi a decadência econômica do município que ajudou a conservação do patrimônio histórico de Pelotas, ou pelo menos impediu que a degradação fosse maior. A falta de dinheiro não retardou a ação do tempo, mas amenizou a ação do homem, ainda mais nociva. "É paradoxal isso, mas se a cidade tivesse mais recursos para a construção civil, teria destruído muito mais prédios. Porque a mentalidade das pessoas é de construir coisas novas. As pessoas não conseguem enxergar a beleza do antigo. De certa forma, a gente continua trocando ouro por espelinho", reflete, enquanto admira as escaiolas nas paredes, que antes escondidas nas sombras do prédio em ruínas, com o restauro voltaram a ser vistas.


A reabitação

Com quase dez anos de atividades constantes, dentro e fora da Casa, o Instituto é hoje um espaço concreto habitado por significados abstratos, como as escaiolas - metafóricas e enigmáticas - descritas por Vitor Ramil. Assim, capaz de atrair ações que convergem até ela e irradiar reflexos da mobilização cultural que ocorre no seu interior, não por acaso é reconhecido como um marco sólido da cultura do Rio Grande do Sul do passado, no presente e para o futuro.

Atualmente são mantidos diversos projetos permanentes, (veja no quadro) entre eles o Núcleo de Estudos Simoneanos. O grupo, que começou antes mesmo da criação do Instituto, se reúne semanalmente e é o verdadeiro "cérebro" da instituição, pois mantém a obra de Simões permanentemente lida e discutida, agora num local que não poderia ser mais inspirador.

Além dos simonianos, circulam pelo lugar mais de 500 pessoas todos os meses – uma movimentação que mantém a casa sempre ventilada.


O novo Blau

Mais de nove décadas depois da morte de Simões, sua obra talvez nunca tenha estado tão viva. A casa tem o seu espírito empreendedor, e a alma do velho Blau refletida nas vidraças. É o novo jeito de contar histórias.

A “memória” do vaqueano está se modernizando. Até o final deste ano o Instituto deve dar início à execução do projeto de digitalização do acervo, que só depende da liberação dos recursos (R$ 40 mil) aprovados na Consulta Popular de 2006.

Mais que um ambiente de preservação de um valioso acervo de obras e peças - muitas delas raras -, a Casa do Capitão se tornou um lugar de reflexão e releituras inesgotáveis para o legado simoniano. Mais ainda: tornou-se um ponto de referência por hospedar tantas outras atividades ligadas às artes, à história, à literatura – de oficinas de teatro a reuniões do grupo dos representantes dos museus de Pelotas - de forma ampla em uma cidade ainda órfã de uma casa própria para a cultura.

“Nos interessa que a história seja preservada como um todo. É importante que o Museu da Baronesa esteja em boas condições, por exemplo, porque quando o visitante vai lá ele pode ter uma noção de como era a sociedade pelotense da época de Simões”, contextualiza o presidente do Instituto, Henrique Pires.

“Abrir as portas para a comunidade é o que justifica a existência de um espaço como esse. Uma casa que foi reformada e é mantida com recursos de renúncia fiscal tem a obrigação de estar a serviço do público”, afirma ainda, ao admitir que teme que a polêmica envolvendo desvio de recursos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC-RS) possa comprometer a programação do ano que vem. “Por enquanto a análise dos projetos está suspensa, mas nós vamos atrás de parcerias”, garante.


Algumas atividades
- Prêmio Trezentas Onças - reconhecimento simbólico concedido anualmente às personalidades que se destacam no trabalho pela preservação da memória e divulgação da obra de Simões.

- Simões Lopes vai à Escola - projeto de aproximação do escritor com os novos leitores através de atividades que se realizam nas escolas e no Instituto. Desde 2007, já contemplou mais de 40 colégios e cerca de 3 mil alunos das redes públicas e particular de ensino de Pelotas e região.

- Blau: Centro de Estudos Cênicos - oficina permanente de teatro onde a obra simoniana é a matéria-prima da didática de formação do ator.

- Teatro Mostra Simões - projeto que incentiva a formação de grupos de teatro nas escolas por meio de oficinas preparatórias. Os grupos recebem suporte técnico para elaborar esquetes inspiradas na obra de Simões e depois apresentam as montagens em outras escolas. Este ano, 6 colégios participam diretamente e outros 14 irão receber as apresentações itinerantes até dezembro.

- Seminários - o IJSLN faz parte da comissão organizadora da Feira do Livro e anualmente promove seminários temáticos. Este ano, pela primeira vez, contará também com um estande próprio no evento.

- Prêmio JSLN de Artes Visuais - implementado este ano, o concurso incentiva a produção contemporânea de artistas gaúchos.

- Palestras e oficinas - inúmeras oficinas voltadas para o aprendizado de diversas linguagens artísticas são promovidas pelo Instituto, quase sempre com participação gratuita, ou a preços simbólicos. Além disso, palestras, debates e seções de exibição de filmes são freqüentemente realizados no auditório da Casa. No próximo domingo, Vitor Ramil inaugura a série Diálogos na Casa de Simões, quando irá discutir com leitores as interpretações de seu livro Satolep.


Novos leitores

Na escola, os alunos aprendem que "João Simões Lopes Neto foi o mais importante escritor regionalista do Rio Grande do Sul". No Instituto, onde as crianças se sentem em casa, o Simões, ou simplesmente João, assume um tom menos solene e uma importância real não para o mundo, mas para cada um dos novos leitores que são conquistados pelo carisma e pela prosa cativante do escritor.

Alana, de nove anos, acha que ele foi importante porque seus livros registraram as histórias dos gaúchos e, traduzidos, fizeram com que o Estado ficasse conhecido em todo o mundo. Ela, como os colegas, não sabe ler japonês. A tradução, para eles, nem é tão importante assim, porque apesar de viverem no Rio Grande do Sul, eles aprenderam e reconheceram suas próprias origens pelas histórias de Simões, contadas em português mesmo, mas um português carregado de sotaque.

Durante a leitura, orientada pela professora, os alunos formularam um glossário. "Charlador" foi uma das primeiras palavras cujo significado precisaram pesquisar. "Charlador é uma pessoa que fala muito, que conta histórias, como o Blau Nunes", explica a aluna Eduarda, mostrando que tem a lição na ponta da língua. "Ele é um tagarela", completa Arthur, arriscando um sinônimo mais próximo do seu vocabulário.

Envolvidos pela atmosfera do passeio literário, os alunos da quarta série do Colégio São Francisco de Assis soltam a imaginação. "Eu acho que o Simões era alto, magro e bigodudo", diz alguém. "Era até bem charmoso... E ele fumava! Naquela época fumar era considerado elegante! Mas hoje é bem diferente...", analisa outro aluno.
"Mesmo ele tendo a aparência de um senhor muito velho, eu acho que ele tinha mesmo uma alma de criança. Ele é muito simpático!", diz Bruna, que no teatrinho montado na escola fez o papel de protagonista do conto O mate do João Cardoso.

"As pessoas acham que museu é uma coisa chata, parada, mas esse aqui não é. A gente não deve destruir nada disso porque se a gente estragar não tem como ele escrever de novo! E eu acho que lá do céu o Simões deve estar feliz porque a gente vem visitar a casa dele e quer saber mais das histórias que ele contava", resume a colega Eduarda.


Casa velha, vida nova

Arejadas pelo folhear dos jovens as páginas amareladas dos livros são tratadas como verdadeiras preciosidades. As velhas histórias são novidade para as crianças e outros leitores que como elas dão os primeiros passos nas andanças literárias feitas há muito tempo pelo velho Blau.

A Casa do Capitão é ponto de partida para esses caminhos. É a descoberta, de que entre Simões - escritor, empreendedor - e João - o homem -, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia –, que de vez em quando alguém reconta, como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca...


Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Estilo / Capa e páginas centrais | Publicado em: Pelotas, Domingo, 2 de novembro de 2008

Nenhum comentário: