domingo, 23 de novembro de 2008

Polêmica na bilheteria I

Instituída nos anos 40, a meia-entrada foi incorporada à cultura de tal modo ao longo das décadas que virou tradição entre os principais consumidores de lazer: com a carteirinha na mão, os estudantes, juntamente com os idosos, representam a maior parcela das platéias dos eventos artísticos, culturais e esportivos no País.

Quando se fala em pagar menos, em princípio todo mundo gosta, mas algumas perguntas são inevitáveis: os preços dos ingressos estão altos porque existe meia-entrada ou a meia-entrada existe porque os ingressos estão pela hora da morte? E se a meia-entrada deixasse de existir, como a CPMF, os preços dos shows, do cinema, do teatro e dos jogos de futebol cairiam imediatamente?

O fato é que com o benefício o ingresso pesa menos no bolso de quem tem direito ao desconto - com o respaldo da legislação federal e também dos estados e municípios - mas pesa mais no orçamento dos promotores de eventos. Para reequilibrar a balança e não deixar de pagar as despesas, o jeito geralmente é repassar o ônus adiante, reajustando a tabela das receitas. E aí...


Quem paga a outra metade?

Longe de ser uma solução definitiva para garantir o acesso à cultura - previsto no artigo 23 da Constituição Federal como competência do Estado - a meia-entrada acaba por dividir os prejuízos entre os artistas, a iniciativa privada – produtores de eventos e exibidores de cinema - e o público pagante - com ou sem desconto. No final, quem paga a conta é o cidadão comum, uma vez que, em geral, o preço dos ingressos sofre aumento proporcional para cobrir o benefício dos estudantes.

Outros apelam para manobras que mascaram o valor real cobrado, como a concessão de descontos promocionais para o público em geral mediante a doação de alimentos não perecíveis, o que é ilegal. "No fundo, não passa de um benefício ilusório", diz o produtor do Grupo Tholl Paulo Martins. "A gente acaba tendo que dobrar o valor do ingresso para não ter prejuízo."

Atualmente, tramitam na esfera federal dois projetos de lei que pretendem regulamentar o benefício dos estudantes, um na Câmara e outro no Senado.

O projeto apresentado pelos senadores Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e Flávio Arns (PT-PR) – PLS 188/2007 - corre na frente. Já obteve parecer favorável em duas comissões – a de Constituição e Justiça e a de Educação, Cultura e Esporte – e será votado nesta terça-feira.

O outro – PLC 1007/2007 -, elaborado pela deputada Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), tramita na Câmara em caráter de urgência, mas ainda está em discussões preliminares e não deve entrar na pauta de votação tão cedo.
O texto original dos dois projetos tem vários pontos em comum. O principal deles é a limitação do benefício aos estudantes do ensino regular (educação básica, profissional, superior e especial – para portadores de necessidades especiais). O projeto da Câmara inclui ainda os alunos dos cursinhos pré-vestibulares.

Ambos os projetos derrubam a Medida Provisória 2.208, aprovada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que pôs fim à exclusividade de emissão das carteirinhas para as entidades reconhecidas pelo Ministério da Educação. Pela nova lei, as Carteiras de Identificação Estudantil (CIE) válidas seriam somente aquelas expedidas pela União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e outros órgãos devidamente autorizados, deixando de valer, portanto, aquelas confeccionadas pela própria escola. “Regularizar isso é o mais importante”, defende o senador Eduardo Azeredo. “Não podemos voltar ao sistema cartorial do passado, mas também não podemos manter esta anarquia de hoje, onde a pessoa faz qualquer cursinho e tem carteirinha de estudante, e onde as carteirinhas são vendidas no meio da rua”, afirma.

Para coibir falsificações e fraudes, o projeto da deputada Manuela ainda prevê a criação de um Selo Nacional de Segurança.


Restrições

Azeredo propõe uma cota máxima de 40% dos ingressos para a meia-entrada em espetáculos e eventos esportivos. É exatamente esse o principal ponto de discussões. Os produtores lembram que a lei dos transportes coletivos, por exemplo, limita o número de acentos reservados para idosos. Mas, para o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) o benefício não deve ser restringido por cotas. Com esse argumento ele teve o pedido de vistas do projeto concedido pelo presidente da comissão de Educação, o senador Cristovam Buarque, e conseguiu assim impedir que o projeto fosse votado já na terça-feira passada.

A deputada Manuela também é contra limitar a venda de ingressos com desconto, apesar de ser a autora – enquanto era vereadora - do projeto que resultou na lei vigente em Porto Alegre desde 2006, que prevê desconto de apenas 10% - ao invés dos tradicionais 50% - nos espetáculos realizados de sexta a domingo e nos cinemas aos finais de semana, entre outras restrições. “A lei de Porto Alegre sofreu modificações. Ela não representa tudo aquilo com o que eu concordo, mas é o que nós conseguimos aprovar. Aqui vai ser a mesma coisa. Não sou intolerante e espero que os demais parlamentares também não sejam e estejam dispostos a dialogar com a sociedade”, justificou.

A proposta de emenda ao projeto do senador Azeredo, que previa restrição do desconto ao finais de semana não passou pelas comissões. Mas entre as emendas apresentadas que foram aceitas pela relatora Marisa Serrano (PSDB-MS) e poderão ser aprovadas com a lei está a proposta da senadora Ideli Salvatti (PT-SC) que determina a venda de ingressos com desconto somente até 72 horas antes do evento.


Fique atento

Você pode acompanhar a tramitação dessas e outras matérias em discussão no Legislativo através dos sites www.camara.gov.br e www.senado.gov.br.


Responsabilidade social ou sobrecarga na iniciativa privada?

Os produtores fazem as contas e reclamam: no cinema e nos shows mais populares em Pelotas, o público pagante com direito à meia-entrada chega a ocupar em média 70% da platéia. "Aqui, além dos estudantes e dos aposentados, a gente ainda tem que subsidiar os professores. O que justifica uma única categoria profissional ter direito a esse benefício? Sem contar que não recebemos do Estado nenhum tipo de incentivo", indigna-se o empresário Jarbas Mello. “No show do Nenhum de Nós eu subsidiei simplesmente R$ 14 mil em descontos e isso não é pouca grana.”

Para os defensores da lei, isso faz parte da responsabilidade social inerente a toda atividade produtiva. Mas para os produtores o Poder Público simplesmente transfere o ônus que o Estado é incapaz de assumir.

Tanto o projeto que tramita na Câmara quanto o que será votado no Senado prevêem possibilidade de ressarcimento aos produtores independentes através do Programa Nacional de Apoio à Cultura, com verbas do Fundo Nacional de Cultura ou patrocínios, dentro dos critérios da Lei Rouanet. Os empresários, entretanto, acreditam que é um recurso distante da realidade da maioria das produções. "Dificilmente se consegue chegar a esses recursos porque eles dependem de um processo muito burocrático", afirma Mello. Para a deputada Manuela, esta "é uma possibilidade em que cabe nova regulamentação".

Ao ser questionado sobre a necessidade de mecanismos mais acessíveis de subsídio para a iniciativa privada, o senador Azeredo desconversa. "Isso já é outra história... É algo que tem que ser discutido em outro projeto que trate de incentivo à cultura."


Jurisprudência

Nos mesmos moldes dos projetos de lei federais, a Lei Estadual 9.869 que regulamenta a meia-entrada no Rio Grande do Sul, aprovada em 1993, está suspensa desde 2000 por uma liminar. Na interpretação do Tribunal de Justiça do Estado, responsável pelo julgamento em primeira instância, a lei é considerada inconstitucional por ter caráter discriminatório entre estudantes e não estudantes, além de impor intervenção abusiva do Estado no direito de propriedade privada e violar o princípio da livre iniciativa.

Na opinião dos defensores do direito à meia-entrada para estudantes, o benefício deve ser entendido como uma complementação da formação escolar. Outros entendem que a lei acaba por privar do acesso à cultura quem já não tem acesso à educação. Para a deputada Manuela, não há contradição em restringir o desconto a quem é estudante. “O Bolsa Família também é vinculado à educação. Os jovens precisam estar na escola para receber. Se ele não está no lugar onde deveria estar, é preciso pensar em mecanismos que proporcionem essa condição básica”, argumenta.

Segundo ela, a Câmara está mobilizada para criar uma comissão especial da Juventude que irá discutir a criação de um Estatuto que contemple os jovens acima de 18 anos, que não são respaldados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse novo Estatuto, seria incluída também uma norma definitiva para a meia-entrada. “Nós recém conseguimos aprovar uma emenda que inclui o termo 'juventude' na Constituição Federal. Ainda temos muito o que avançar."


Eles querem o direito inteiro

Contra as restrições e contra a exigência de carteirinhas exclusivas, o presidente da União Municipal dos Estudantes de Pelotas (Umespel) - filiada à União Gaúcha de Estudantes (Uges), Alex Cunha, considera os projetos de lei federais um atraso em relação à legislação vigente no município. Segundo ele, a entidade tem atualmente 22 mil sócios e confecciona carteirinhas a R$ 5,00 na sede e a R$ 2,50 para quem solicita o documento nas escolas (para representantes que fazem visitas regularmente às instituições de ensino), enquanto entidades como a UNE e a Ubes cobram entre R$ 15 e R$ 20 pelo documento. "É muito caro. A maioria dos alunos da periferia não tem condições de adquirir."

Além disso, o projeto prevê a validade do documento por um ano, enquanto a lei do município exige a revalidação a cada seis meses. "Esse controle semestral é uma forma de avaliar a evasão escolar e fazer com que quem deixou de estudar pare de receber o benefício da meia-entrada", diz ele.

Alex Cunha é a favor de cotas por "entender o lado do produtor cultural", tanto que se antecipa à legislação e ele mesmo negocia com os organizadores de eventos um percentual de ingressos disponíveis para os estudantes, como fez com o Parque Tupy, que abre inclusive em dias específicos especialmente para receber os grupos escolares. "A gente sabe que se cumprir a lei rigorosamente os produtores quebram", afirma Cunha, que também recebe lotes de ingressos dos produtores para vender separadamente, direto aos associados da Umespel.

Jardel Oliveira, coordenador do Procon em Pelotas, afirma que as denúncias de descumprimento da lei da meia-entrada diminuíram consideravelmente nos últimos meses, depois que o órgão realizou uma campanha de conscientização. Segundo ele, o trabalho contemplou principalmente casas noturnas e organizadores de festas, que de acordo com os produtores de shows são geralmente os menos visados pela fiscalização.

Oliveira diz acreditar que as mudanças só vão burocratizar mais o benefício e dificultar a fiscalização de uma lei que, segundo ele, já não é cumprida muitas vezes. "Se estipularem dias para oferecer o desconto o estudante vai ter que andar com uma tabelinha no bolso pra poder comprar ingresso", afirma. Sobre a venda separada de ingressos para estudantes ele diz: "Não pode, assim não tem como fiscalizar. O estudante tem que comprar ingresso no mesmo local."

Junto com o Procon, o Ministério Público, a Procuradoria Geral do Município e a Secretaria de Serviços Urbanos - que emite alvarás de funcionamento - são responsáveis por fiscalizar o cumprimento da norma. "Os produtores às vezes tentam inverter a interpretação da lei, mas a orientação do Procon é sempre defender a parte mais fraca, que é o consumidor."


Tire suas dúvidas

O Procon em Pelotas fica na rua Professor Araújo, 1.653 e atende de segunda à sexta-feira das 12h30min às 18h30min. Telefone 3284-4477.


Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Estilo / Páginas Centrais | Publicado em: Pelotas, Domingo, 23 de novembro de 2008

Um comentário:

Mauricio disse...

Ótima a matéria Bianca! Parabéns!
Este assunto tem muito a ser discutido ainda, responsabilidades a serem definidas e tudo mais. O que não pode é só se olhar a questão como benefício financeiro, como vêem alguns produtores e o próprio governo. Se trata sim de um benefício, mas na cultura e formação de nosso povo. Quem seria mais digno de gozar de tal benefício que nossos estudantes e os professores que juntos formam o futuro desse pais? E os idosos que tanto já trabalharam e contribuiram?
Viva a meia-entrada!