terça-feira, 4 de novembro de 2008

X de Charque

"A" de Arroio Pelotas. "D" de doces. "X" de charque, ou melhor, de "xarque". Houve um tempo em que a cartilha era assim. O principal produto pelotense, no auge da tradição charqueadora do município, ainda não havia passado pela reforma ortográfica que o fez pular da penúltima para a terceira posição na ordem alfabética. E era com esse termo que as professoras ensinavam a redação de cartas e, ao mesmo tempo, passavam noções básicas sobre as transações comerciais mais recorrentes na época: a compra e a venda da carne salgada e secada ao sol.

Aprender o be-a-bá no século 19 era uma experiência bem diferente das fórmulas pedagógicas empregadas para alfabetização das crianças de hoje. E é isso o que se pode descobrir na exposição Cultura e Material Escolar, que reúne um raro e curioso acervo dos materiais didáticos com que provavelmente nossos avós ou bisavós aprenderam as primeiras lições.

"Essas peças oferecem uma percepção dos valores que eram transmitidos às crianças até as primeiras décadas do século 20. Por ali é possível observar as regras de conduta moral vigentes, os padrões estéticos da música e do desenho e a própria noção de civilidade que se tinha muito mais forte do que se tem hoje", compara o coordenador da mostra e professor da disciplina de História da Educação do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Eduardo Arriada.

A mostra reúne antigüidades capazes de provocar estranheza para a nova geração e nostalgia para quem viveu no tempo em que as canetas de pena e os tinteiros eram itens de primeira necessidade na lista de material escolar. Afinal, a caneta esferográfica só seria inventada na década de 30 e mesmo quando chegou ao Brasil, dez anos mais tarde, demorou até deixar de ser artigo de luxo para se popularizar nos estojos dos estudantes por aqui.

A lousa portátil - lisa e pautada -, também chamada de "pedra de ardósia" era outro material indispensável na alfabetização. Considerada a "bisavó do notebook", ela servia para que os alunos exercitassem a escrita antes de "passar a limpo" para os cadernos, que eram caros, como explica o professor. Resultado do impacto digital, os exercícios de caligrafia estão praticamente abolidos e a escrita manual, pela falta de prática de escrever em detrimento da grande habilidade que se tem atualmente para digitar, é cada vez mais disforme e substituída pelo padrão dos caracteres do computador. Todos iguais, mas com certeza sem o mesmo charme da rebuscada escrita caligráfica.

No tempo da velha caderneta, a avaliação dos alunos não era apenas quantitativa, pois continha também comentários sobre o desempenho dos estudantes (especialmente quando faziam 'algo errado').

Outra raridade da mostra é a coleção - quase completa - das primeiras edições dos livros didáticos escritos por Érico Veríssimo e uma série de livros de história e geografia que mostram o quanto o ensino está mudado atualmente. Aliás, não apenas a forma de ensinar mudou, como também a própria história e geografia não são mais as mesmas.

A ideologia também era outra: no Hino Republicano ou, pela grafia da época, "Hymno" (como é que se podia ler uma palavra dessas?!) ainda continha a estrofe suprimida em 1966, que se refere à "sermos gregos na glória e na virtude, romanos". Além disso, outra curiosidade: não era o "vinte" e sim o "vento" de setembro tal "o precursor da liberdade" citado no terceiro e no quarto versos.

Diferenças à parte, o responsável por reunir esse acervo chama atenção para as semelhanças existentes na educação daquela época em relação aos dias de hoje. "A escola ainda é uma instituição permeada pela relação aluno-professor", afirma ele, que considera a popularização do material escolar um dos principais ganhos da atualidade. "Os alunos continuam usando lápis, caneta, borracha e cadernos. Com o processo de escolarização das massas esses materiais ganharam qualidade e ficaram mais baratos", avalia. No entanto, ele não dispensa uma análise qualitativa do cenário: "o nível da educação caiu muito. O ensino das matérias da área das humanas foi reduzido bruscamente nos currículos, enquanto a técnica virou prioridade, sob a justificativa de preparar os alunos para a inserção no mercado de trabalho."


Prestigie:

O quê:
5ª Mostra de História da Educação - Cultura e Material Escolar: Práticas de Ensino
Onde: no Instituto João Simões Lopes Neto (rua Dom Pedro II, 810)
Quando: até o dia 8, com visitação de segunda à sexta-feira das 14h às 18h e no sábado a partir das 19h (durante encontro com o músico e escritor Vitor Ramil previsto no calendário do projeto Diálogos na Casa de Simões)
Entrada franca


Texto: Bianca Zanella | Extraído de: Jornal Diário Popular / Caderno Zoom / Capa | Publicado em: Pelotas, Terça-feira, 4 de novembro de 2008

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